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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Isabel de Jesus
A senhora dos bestiários
Na Idade Média, os conjuntos de iconografias de animais eram chamados de bestiários. Essas coleções de imagens se caracterizavam pela riqueza de combinações e pelo talento dos seus criadores. Na literatura, o argentino Jorge Luis Borges, em Livro dos seres imaginários, realizou um antológico catálogo de "entes estranhos que a fantasia dos seres humanos engendrou ao longo do tempo e do espaço".
Herdeira dessa tradição, Isabel de Jesus, nascida em Cabo Verde, MG, em 1938, maravilha, desde a década de 1970, os críticos de arte europeus, como Anatole Jacovsky, Louis Pauwels e Selden Rodman, e brasileiros, como Jacob Klintowitz. Seus gatos, corujas e grandes pássaros realizados em guache sobre papel beiram o surrealismo.
Feitos com extremo detalhe, os desenhos transportam o espectador a um universo mágico. As imagens são extremamente coloridas, com cores quentes como vermelho e amarelo. Os animais transitam na fronteira entre o real e o imaginário, evocando, além dos bestiários medievais, o universo indígena e o popular.
Filha de pai lavrador e mãe que mostrava seu talento em lindos cobertores e tecidos feitos no tear, Isabel encontrou nela o estímulo que necessitava para dar asas à imaginação a partir do que via na natureza. Aos sete anos, a família se mudou para Ribeirão do Pinhal, PR, onde conviveu com animais selvagens e índios.
A arte da mãe e o contato com povos da terra ajudaram Isabel a desenvolver um talento inato. Seus primeiros suportes foram a areia e pedaços de papel usados de embalagens de macarrão ou açúcar. Do Paraná, ela foi para São Paulo, onde começou a pintar em 1964, sendo descoberta pela pintora Iracema Arditi, que lhe deu grande apoio e incentivo.
No ano seguinte, Isabel realiza sua primeira coletiva na Galeria Jotadê. Depois, veio o reconhecimento internacional, na Galeria Séraphine, em Paris, e suas obras percorreram Lisboa, Milão, Roma, Londres e Amsterdam, sempre com reconhecimento da crítica. A artista teve a oportunidade de morar na França ou na Itália, mas retornou para São Paulo. Atualmente, mora em Francisco Morato, SP, isolada, mas dando prosseguimento a uma obra que impressiona pela inesgotável capacidade imaginativa. Cada animal que cria não é a variante do anterior, mas uma nova concepção colorida e formal que surge.
A coruja e seus filhos, por exemplo, mostra uma imensa coruja vigiando o ninho. Seus filhotes já estão deixando os ovos, enquanto uma onça, menor proporcionalmente à coruja, já se coloca em posição de comer os recém-nascidos. A narrativa pode ser facilmente visualizada e salta aos olhos pela escolha adequada das cores e pelas formas muito pessoais.
Imagens de grandes pássaros e seres fantásticos – como em Bichos que Deus não criou – dão uma dimensão da falta de limites para a criatividade de Isabel. Considerada pelo crítico Luiz Ernesto Kawall uma artista "chagalina, feérica", Isabel de Jesus ama retratar gatos, seja isolados, em duplas ou trios. Modelos não lhe faltam, já que ela tem oito deles em casa, além de outros animais. Mas ela não se limita àquilo que vê. Quadros como O peixe bola são uma amostra disso, pois a fantasia predomina e leva nossa mente a outras dimensões.
Outra marca registrada da artista pode ser encontrada em vasos de flores muito especiais, em que figuras de animais se avolumam, só podendo ser percebidas se olhados atentamente. O mesmo acontece em imagens como Arco-íris. Os desenhos de Isabel de Jesus não são feitos para ser vistos rapidamente, mas observados em detalhes, como sonhos agradáveis, pois cada mirada oferece novas possibilidades.
Os bichos de Isabel nascem da terra e se multiplicam, dando novas cores à natureza. Gansos encantados, pássaros pensativos, rodas que misturam homens e animais, luzes divinas amarelas que parecem translúcidas e até uma visita à lua convivem com formas poéticas, que evocam sonhos, nunca pesadelos; pontes com o surreal, não com o impressionismo.
Os amigos da artista são os animais. Isabel brinca com eles em todos os sentidos. Na vida que consideramos real, afaga-os e alimenta-os. Sobre o papel, transforma-os naquilo que bem deseja, dando liberdade a uma imaginação privilegiada que torna qualquer tema uma primavera colorida. Para a artista, todas as estações são de flores e, mesmo que bois vermelhos sejam vistos em suas imagens, eles surgem num clima fantástico e alegórico, acompanhados de uma menina que voa entre eles com um vestidinho azul.
Cidades são outro tema recorrente na carreira da artista. Casas e igrejas coloridas são mescladas com pássaros, borboletas e flores, além de bichos reais e imaginados. Sapos e peixes muito especiais também costumam aparecer como seres de um outro tempo e espaço, no qual vale tudo aquilo que a imaginação conseguir criar.
A pintora mineira, que também compõe pequenos, delicados e singelos poemas, cuida da suas imagens com dedicação e primazia de detalhes. Em seus guaches coloridos, ela cria os seus bestiários com extrema paciência e capricho. Seus seres fantásticos mesclam-se a flores, tudo com cores vivas e uma criatividade perceptível em cada traço. Cada ente fantástico estimula a imaginação do receptor e conduz à constatação de que a capacidade humana de criar não tem limites, ainda mais quando a responsável pelo processo artístico é a talentosa mineira Isabel de Jesus, uma autêntica senhora de bestiários contemporâneos.
Oscar D’Ambrosio é jornalista, crítico de arte e autor de Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus (Editora UNESP).
FOnte: www.artcanal.com.br/oscardambrosio/isabeldejesus.htm
Fonte: http://catracalivre.folha.uol.com.br
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