Lucian Finkelstein Veio para o Brasil com 16 anos e nos deixou em 2008 |
Tive o prazer de conhecer Lucien Finkelstein pessoalmente, inclusive como paciente na minha clínica odontológica e, como todo o segmento da arte naif, sou grato por ele ter sido o responsável da instalação do museu (MIAN - o maior acervo desse gênero de arte) aqui na nossa cidade, o Rio de Janeiro.
José Augusto Silveira
Acervo do MIAN Divulgação |
Transcrevemos, aqui, a apresentação escrita por Lucien Finkelstein, no livro “O mundo fascinante dos pintores naïfs” (o qual faz parte da nossa biblioteca), na intenção de fundar o que hoje é o Museu Internacional de Arte Naif, no Cosme Velho, Rio de Janeiro.
O texto é uma verdadeira aula do que é arte naif, da importância e relevância dos artistas brasileiros e do reconhecimento dos nossos naifs pelo mundo.
Álvaro Nassaralla
APRESENTAÇÃO
Como toda paixão que se preza, começou com um amor
a primeira vista. Quando eu era ainda adolescente, comprei meu primeiro quadro
naif sem conhecimento de causa, por simples intuição e sentimento.
Essa paixão, que já se prolonga por quatro
décadas, só fez crescer com o tempo. E, cada vez mais, me sinto surpreso,
tocado, maravilhado e frequentemente fascinado diante dessa arte que, como a
própria vida, se renova com cada pintor e a cada dia, trazendo sempre um sabor
de aventura e encantamento.
Quando penso na pintura naif, continuamente
diferentente e renovada, lembro-me dos belos versos de Paul Valery: “La mer, la
mer! Toujours recommencee …”.
Durante todos esses anos tive o prazer e a
alegria de descobrir muitos pintores e até de tornar alguns deles reconhecidos
internacionalmente.
A palavra naif, do francês, pode ser traduzida por
ingênuo, primitivo. Essas três palavras devem ser consideradas no seu
verdadeiro sentido, ao pé da letra. Todos derivam do latim: NAIF vem de NATIVUS
– o que nasce, o que é natural; ingênuo vem de INGENUS – nascido livre e
primitivo, de PRIMITIUS – que pertence ao primeiro estado de uma coisa. Por
meio dessas palavras, poderíamos quase definir a própria pintura naif: aquela
que é natural, livre e pura.
O termo Naif, na época em que foi lançado era um
apelido, da mesma maneira como em outras épocas os pintores foram batizados de
impressionistas, fauvistas, cubistas, futuristas, surrealistas, etc.
Os pintores que fazem esse gênero de pintura
também foram chamados de outras maneiras: pintores de domingo, primitivos,
ingênuos, primitivos modernos, autodidatas, primitivos de hoje, instintivos,
espontâneos, etc.
O MIAN por Lia Mittarakis |
Obs: Daqui em diante vamos substituir a palaras Naif pela abreviação N, a fim de evitar sua repetição exagerada.
Mas, afinal, que pintura é essa?
A rigor, não se pode dizer que exista uma pintura
naif, mas que há pintores naifs, pois cada um deles é um mundo em si e
absolutamente diferente de todos os outros.
Já que, em princípio, eles são autodidatas, cada
um tem a sua maneira próprio de pintar. Como, em geral, não aprenderam a
desenhar, a pintar, não seguiram nenhuma
escola, aprendizado ou academia, eles têm que encontrar tudo sozinhos: da
estética à técnica. E aí está a sua força, pois assim podem pintar com
liberdade absoluta, sem procupações de regras, sem complexos nem
constrangimentos. Eles podem ousar tudo. São os poetas-anarquistas do pincel.
Como consequência disso, o pintor N é o artista mais sincero, mais puro, o mais
capaz de emocionar. Ele nem sabe que é um pintor N: pinta como pode e é só. O verdadeiro pintor naif é um poeta
que nos emociona com a candura do olhar que pousa sobre aquilo que pinta: a
realidade, o cotidiano, seus sonhos, suas visões.
Através de suas pinturas, somos levados a
verdadeira origem da arte, ao gostar de um quadro simplesmente, sem procurar
explicá-lo ou compreendê-lo.
Como bem disse André Gide: “um quadro é uma
superfície para emocionar”. E aí se encontra a essência da pintura N:
emocionar, fazer sonhar. Os pintores naifs pintam com o coração e, por isso, é
preciso ver seus quadros mais com o coração do que com os olhos.
A arte N, na verdade, pode ser encontrada na
própria origem da arte. Poderíamos dizer que os primeiros pintores naif foram
os homens pré-históricos, que há dezenas de milhares de anos encheram as
paredes de grutas como a de Lascaux, na França, de touros, cavalos, cervos,
bisões, numa pintura tão variada e tão bela que valeu a gruta de Lascaux o nome
de “Capela Sistina da Pré-História”. Desde então, os pintores N continuaram
a existir e a marcar sua presença em todas as épocas e em inúmeras formas de
expressão.
A redescoberta da arte N foi, por assim dizer,
uma consequência natural da arte moderna. Como o Fauvismo, o Cubismo, o
Expressionismo, etc, as deformações e outras técnicas faziam parte das
pesquisas dos pintores modernos, que também sentiam necessidade de apagar tudo,
de esquecer o que tinham aprendido nas academias para recomeçar do zero.
"Lucien Filkelstein"
Pintor não citado
Foi assim que Gauguin se exilou na Oceania para
“reaprender a pintar com os primitivos”. Picasso, depois Modigliani e muitos outros, recorreram a arte negra. Era
uma necessidade de recomeçar tudo, de retomar as coisas em bases mais
verdadeiras, mais puras. Uma verdadeira “volta às origens”.
Por isso, a arte moderna “descobriu” a arte naif
graças ao gênio do pintor Henry Rousseau, o “Douanier”. Sem nunca ter saído de
Paris, usando apenas sua imaginação, ele pintava florestas de um exotismo impressionante e quadros que, sob uma aparente
simplicidade, revelavam uma arte nova, original de um vanguardismo que só foi
reconhecido bem mais tarde.
Hoje em dia sabemos que Picasso, considerado o
revolucionador da arte do século XX ao pintar seu histórico quadro “Demoiselles
Dávignon”, que data de seu período “negro”, em 1907, teve que levar em conta o
pintor N Rousseau. Vinte anos antes, em 1887, ao pintar “La Bohemienne
Endormie”, Rousseau fez um quadro, no seu estilo, tão revolucionário,
escandoloso e agrevissamente moderno quanto o de Picasso.
A partir do Douanier Rousseau, isto é, do início
do nosso século, a pintura N passa a ter seu lugar ao sol, a ser
reconhecida, valorizada e cada vez mais apreciada. A arte moderna não pode mais
desconhecê-la. Como diz o pintor Matisse: “A arte moderna é uma arte de invenção. No seu início,
trata-se de um arroubo do coração. Portanto, por sua própria essência, ela está
mais próxima das artes arcaicas e primitivas, do que da arte do renascimento”.
Aqui no Brasil, porém, país que é um verdadeiro
celeiro de pintores N, as coisas não foram fáceis. Basta lembrar que muitos
dos pintores naifs entre nós foram descobertos por estrangeiros que aqui viviam
e souberam valorizar o que esses pintores faziam. É o caso de Chico da Silva,
descoberto pelo suiço Jean-Pierre Chabloz, Paulo Pedro Leal e lançado por Jean
Boghici, Miranda e tantos outros.
Mas, no exterior, a pintura N brasileira e reconhecida e prestigiada.
Jamais, em toda história da pintura brasileira, tantos artistas foram expostos,
reproduzidos em livros, comentados ou citados como exemplo, como o são hoje em
dia nossos pintores N.
Não há uma só exposição internacional importante,
de retrospectiva, em que pintores naifs brasileiros não sejam convidados a
participar e convidados unicamente por critério de qualidade, de originalidade
e de mérito pessoal. Ao mesmo tempo, em todos os museus internacionais de arte
N, a pintura brasileira está representada por vários artistas.
Por outro lado, em todas as obras internacionais
sobre arte N, o Brasil tem sempre lugar de destaque. Nunca se fez referência
as ‘escolas primitivas’ do mundo como a iugoslava ou a haitiana, sem citar
também a brasileira. Na verdade, a pintura primitiva brasileira (com várias
dezenas de artistas) é a única a ser reconhecida no mundo como representativa
de seu país.
Exemplo significativo do valor que se atribui a
pintura N brasileira e o fato de que, o único pintor brasileiro a ser
premiado na mais importante exibição de arte contemporânea foi um pintor N.
Francisco Domingos da Silva, o Chico da Silva, ganhou com a sua pintura, uma
menção honrosa na 33a. Bienal de Veneza, em 1966. Outro artista brasileiro a
ter conseguido nessa mostra foi Aldemir Martins, como desenhista, na 28a. Bienal de
Veneza , em 1956.
Por todos esses fatos,
podemos dizer que os pintores naifs brasileiros – por seu número e por sua
qualidade – são os verdadeiros porta-bandeiras da pintura nacional fora de
nossas fronteiras.
Mas, para voltar a minha paixão pela pintura
N, que de início era mais brasileira, ela logo se tornou internacional. A
medida em que viajava pelo mundo inteiro, a procura de pintores N
ampliou-se. De Hebline, na Iugoslávia, berço de N famosos como Generalic e
Rabuzin, passando por Xi-An na China, que além de fantástico exército terracota
possui uma comuna agrícola que já é celebre por pintores naifs, até Marrakech,
no Marrocos, ou Katmandu, no Nepal, a busca era sempre a mesma: onde estão os
pintores N desse lugar?
Às vezes era difícil encontrá-los: não compreendia a língua, não me fazia entender. Então, valia tudo: mostrar reproduções de outros N, mímica, experimentar palavras afins: primitif, naivni, popular, etc. A pesquisa incluia antiquários, feiras, “souks”, mercados, centros de artesanato e outros.
Às vezes era difícil encontrá-los: não compreendia a língua, não me fazia entender. Então, valia tudo: mostrar reproduções de outros N, mímica, experimentar palavras afins: primitif, naivni, popular, etc. A pesquisa incluia antiquários, feiras, “souks”, mercados, centros de artesanato e outros.
Aos poucos a coleção foi aumentando. Com minhas
viagens, consegui quadros de muito países e várias épocas. Constituí, assim, ao
longo dos anos, quase sem me dar conta, uma coleção com mais de mil quadros.
Do século XVII até nossos dias, que por si só poderia constituir uma pequena
história da arte N.
Continuando a procura de novas descobertas, de
novos talentos – o último deles é de uma senhora polonesa, de 87 anos, que vive
na França -, vi-me diante de dois problemas. Um de ordem prática: onde guardar
essa colação sempre crescente? E o outro, um problema de consciência: seria
justo que esses quadros fossem apreciados apenas por mim, pelos parentes e
amigos? Afinal, cada dia mais se reconhece a pintura N como um dos pilares
da pintura moderna. Seria egoísmo de minha parte manter esses quadros no âmbito
de uma colação particular?
Foi então que surgiu a idéia de fazer um museu de
arte N, doando esses quadros para constituir a base do acervo.
Conhecendo quase todos os museus de arte N do mundo, percebi a grande lacuna que existe no Brasil nesse sentido. Nossa arte N não tem ainda um espaço que a valorize e permita aos brasileiros entender porque é tão bem acolhida e admirada no exterior . A “convivência” dos quadros dos nossos artistas com os dos N estrangeiros, por sua vez (já que o museu será internacional), seria mais um ponto de reflexão e comparação. [N.E.: O texto é de 1988]
Conhecendo quase todos os museus de arte N do mundo, percebi a grande lacuna que existe no Brasil nesse sentido. Nossa arte N não tem ainda um espaço que a valorize e permita aos brasileiros entender porque é tão bem acolhida e admirada no exterior . A “convivência” dos quadros dos nossos artistas com os dos N estrangeiros, por sua vez (já que o museu será internacional), seria mais um ponto de reflexão e comparação. [N.E.: O texto é de 1988]
Ao começar a classificar meus quadros por épocas,
países e – no caso do Brasil, por estados – descobri que esse futuro museu de
arte N será o mais importante do mundo, pelo número e variedades de quadros.
Não perco a esperança de que, uma vez em funcionamento, venha a se impor também
pela qualidade de sua obras.
A descoberta desse fato encorajou-me mais ainda a
continuar a coleção e, na medida do possível, completar suas lacunas.
A exposição que tenho o prazer de apresentar agora
corresponde a cerca de dez por cento do acervo do futuro museu, que irá se
chamar Museu Internacional de Arte Naif
do Brasil (MIAN) e que espera um local digno para sua instalação. Na
verdade, o MIAN já poderia estar funcionando (a Fundação que prevê a sua
criação já existe há três anos), se eu não fosse tão exigente e minuncioso
na escolha de sua localização, sabendo o grande atrativo de importância
nacional e internacional que esse museu trará para o Rio de Janeiro.
Ao fazer essa exposição, numa primeira etapa, e
ao realizar o MIAN, em seguida, considero estar saldando uma dívida de
reconhecimento para com essa cidade maravilhosa, que como o Cristo Redentor, me
acolheu de braços abertos quando aqui cheguei, aos dezesseis anos. Vinha como
turista e nunca mais saí daqui. Também foi um caso de amor a primeira vista,
que já dura quarenta anos. Foi aqui, nessa cidade que adoro, que passei o
resto da adolescência e cumpri todas as etapas da minha vida.
Graças a esse país e a seus habitantes, tão generosos
com os estrangeiros, tive a oportunidade de conquistar tudo o que um homem pode
desejar na vida. Sucessos esportivos na juventude, vida afetiva, mulher,
filhos, netos, amigos em todos os meios e, enfim, o sucesso profissional acima
de qualquer expectativa.
Nunca me cansarei de repetir que devo tudo ao
Rio, ao Brasil, aos brasileiros. Se conseguir embelezar um pouco mais nossa
cidade maravilhosa ao lhe oferecer essa atração cultural, nada mais será do que
devolver uma parcela ínfima de tudo que recebi dela… Eu me sentiria o mais
feliz dos homens.
Lucien Filkelstein
1988
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